Nota da Sociedade Brasileira de Bioética e das entidades abaixo listadas em REPÚDIO aos danos aos participantes pelo descumprimento de normas éticas em pesquisa que utilizou a droga proxalutamida e em APOIO ao Conselho Nacional de Saúde-CNS/CONEP pela apuração dos fatos pela Procuradoria Geral da República (PGR)

A Sociedade Brasileira de Bioética e as entidades abaixo listadas REPUDIAM VEEMENTEMENTE a realização de pesquisa envolvendo o ser humano[1], com descumprimento dos requerimentos éticos emanados da Resolução 466/2012 do CNS, com modificações não autorizadas do protocolo e do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

O fato em tela, detalhado na Nota Pública do CNS[2] e na representação da CONEP à PGR[3], protocolada em 3 de setembro de 2021, refere-se à ensaio duplo-cego com Proxalutamida (antiandrogênio não esteróide desenvolvido para o tratamento de câncer do seio e da próstata e não registrado para outros usos) em pacientes gravemente afetados pela infecção pelo SARS-CoV 2.

As entidades se ASSOCIAM à representação da CONEP à PGR “para investigação de 200 óbitos relatados, assim como, no que couber, de quaisquer outras causas que ensejarem em danos decorrentes da pesquisa em comento.”

APOIAM ainda a decisão da CONEP de suspender definitivamente o estudo devido a “presença de indícios de irregularidade” na sua condução, “para proteger a dignidade e demais garantias dos participantes da referida pesquisa”.

Seguem considerações sobre a presente nota:

  1. Utilização de medicamentos em pesquisa envolvendo seres humanos:  

Para a comprovação científica de qualquer medida terapêutica é necessário realização de ensaios clínicos cientifica e eticamente aprovados. Deve ser reiterado que as diretrizes brasileiras relacionadas à ética em pesquisa envolvendo seres humanos (Resolução CNS 466/2012)[4] são exemplares na defesa dos direitos dos participantes e exige que toda pesquisa, para ser iniciada, deve ser antes apreciada e aprovada por um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) institucional, parte do sistema CEP/CONEP. Tanto as normas do CNS quanto o Código de Ética Médica (2019)[5] ainda exigem que o paciente/participante tenha recebido informação clara, baseada em evidências científicas, para decidir sobre procedimentos ou medicamentos a ela/ele prescritos.

O projeto inicialmente aprovado pela CONEP, um estudo duplo-cego, envolvia número definido de possíveis participantes, com Termo de Consentimento livre e esclarecido com informações claras sobre todos os detalhes da pesquisa e para ser realizado em um único centro de pesquisa.

Entretanto, a Nota Pública do Conselho Nacional de Saúde (15 de outubro de 2021) e a representação à PGR pontuam violação dos direitos dos participantes nas diversas etapas do estudo, a mudança do número de participantes, a expansão não autorizada para outros centros de pesquisa e o não esclarecimento de grande número de participantes falecidos durante o projeto.  

É inaceitável a expansão não autorizada para outros centros de pesquisa, chamando a atenção para a inclusão de Manaus no estudo, cidade já muito vulnerada em sua condição sanitária, pela insuficiência de leitos, desabastecimento de medicamentos e em especial pela falta de oxigênio hospitalar para os casos graves.

É também inaceitável a decisão de aumentar o número de participantes, que só foi solicitada à CONEP quando o estudo já estava concluído. E, do mesmo modo, a revelação que o necessário comitê científico independente de acompanhamento do estudo incluía pessoas vinculadas aos patrocinadores, o que no mínimo, caracteriza conflito de interesse.

Entretanto, o fato mais grave está relacionado com a morte dos 200 participantes, pois apesar do conhecimento de número crescente de efeitos adversos graves e de mortes, os pesquisadores responsáveis mantiveram o recrutamento e a execução da pesquisa com o uso de proxalutamida ou placebo). Do ponto de vista ético, quando da ocorrência de excesso de mortes durante um projeto, é mandatório interromper o cegamento do ensaio clínico e comunicar imediatamente à CONEP. Isso para verificar se os óbitos estariam ocorrendo devido ao próprio uso do medicamento experimental ou, se concentrados no grupo controle, estes participantes seriam prejudicados sem se beneficiarem da suposta eficácia da droga em teste. A CONEP não foi notificada e a abertura do cegamento jamais ocorreu durante a pesquisa e, se a proxalutamida teria sido eficaz (como alegado pelo pesquisador), o fato é que se assistiu pessoas morrerem PASSIVAMENTE no grupo controle sem que se adotasse as medidas cabíveis descritas acima

Em resumo, os fatos conhecidos e detalhados pelo CNS e pela CONEP mostram claramente situações de desrespeito às Diretrizes sobre Ética em Pesquisa Nacionais e Internacionais e também ao Código de Ética Médica.

Concordando com o CNS, que afirmou que “Em toda a história do Conselho Nacional de Saúde, nunca se testemunhou no país tamanho desrespeito às normas de ética e aos participantes de pesquisa” e com manifestação recente da Red Latinoamericana y del Caribe de Bioética, este episódio pode ser caracterizado como um dos mais graves atentados aos direitos humanos de participantes em pesquisa e envolve a morte suspeita de 200 pessoas. Vale acrescentar que os fatos apontam ainda para o desrespeito ao que preconiza a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos (DUBDH),[6] da qual o Brasil é signatário. Esta proclama a proteção da Dignidade Humana e Direitos Humanos, a imprescindibilidade do Consentimento, a proteção da Vulnerabilidade Humana e da Integridade Individual.

Há URGÊNCIA no aprofundamento da investigação e, se comprovadas as irregularidades, devem ser ética e legalmente responsabilizados todos os envolvidos, o que inclui a equipe de pesquisa, as instituições participantes e os patrocinadores.  E não há qualquer emergência sanitária que justifique o desrespeito à dignidade e aos direitos humanos dos participantes de pesquisa.

Assim, a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), a Rede Unida, a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), a Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, o Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, manifestam seu apoio e solidariedade às famílias enlutadas e o veemente REPÚDIO aos fatos acima detalhados.

Nos associamos ao CNS e à CONEP na solicitação de apuração urgente pela PGR e se confirmados os fatos, todos os envolvidos sejam responsabilizados cível e criminalmente os responsáveis, para que condutas como esta nunca mais sejam praticadas.

E reafirmamos que não há qualquer emergência sanitária que justifique o desrespeito à dignidade e aos direitos humanos dos participantes de pesquisa.

Brasília, 18 de outubro de 2021


[1] “Proxalutamida para pacientes hospitalizados por COVID-19. The Proxa-Rescue AndroCoV trial, registrado na Plataforma Brasil sob o número CAAE 41909121.0.0000.5553.

[2] NOTA PÚBLICA: CNS elucida à sociedade brasileira fatos sobre estudo irregular com proxalutamida-15 outubro 2021 http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/2095-nota-publica-cns-elucida-a-sociedade- brasileira-fatos-sobre-estudo-irregular-com-proxalutamida

[3] Oficio 829/2021/CONEP/SECNS/MS relativo ao projeto de pesquisa ”Proxa-Rescue AndroCoV Trial” https://sei.saude.gov.br/sei/controlador_externo.php ?acao=documento_conferir&codigo_verificador=0022580072&codigo_ crc=18158CBC&hash_download=97ec9380511f1a1922ea2f639d3667261aad900d28626f6693321eb7d51d82b0aa33d8ac66d2747bf75add37faa161f8ec728c634a6423888fd937142451a20f&visualizacao=1&id_orgao_acesso_externo=0

[4] Resolução CNS 466/2012 – https://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2012/Reso466.pdf

[5] Código de Ética Médica 2019 – Resolução CFM n° 2.217, de 27 de setembro de 2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019 – https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf

[6] A Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) foi aprovada por aclamação em 2005 pelos 191 países presentes na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura – UNESCO, em Paris.

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