Médico comete crime de racismo

Médicos Populares e outras entidade pedem justiça e reparação para o caso

REGISTRO DE REPÚDIO

As instituições, organizações não-governamentais, os coletivos, as associações, os grupos, os institutos, dentre outras formas de organização da sociedade civil, subescritas registram publicamente seu repúdio em relação às práticas (e sentidos por elas emolduradas) do brasileiro Márcio Antônio Souza Junior, bacharel em medicina, vulgo Doutor Marcim. Conforme matéria publicada pelo jornal O Hoje.com (link para leitura: https://ohoje.com/noticia/cidades/n/1380878/t/emgoias-medico-acorrenta-homem-negro-e-ironiza-escravidao/ , acessada por nós às 14h23, no dia 16 de fevereiro de 2022). Assinado por Por Felipe Cardoso e Yago Sales, o texto nos informa que o dito médico publicou em suas redes sociais (perfil @dr_marcim do Instagram) um vídeo em que ele nos mostra um homem preto, atado por correntes nas mãos, pés e pescoço. Doutor Marcim narra: “preso na minha senzala”. O autor do vídeo também se utiliza de termos “prender” e “fugir” revivendo o léxico mórbido da escravização. Em determinado momento, o médico “dá um puxão” por trás, segurando na gargalhadeira colocada no pescoço do homem acorrentado pelos pés e mãos.

O conjunto do que vemos no vídeo se refere à escravização de pessoas africanas e de seus descendentes, legalizada pelo Estado Brasileiro, entre 1530 e 1888. Período em que foram traficadas do continente africano para o Brasil, 4,8 milhões de pessoas, evidência histórica que nos explica porque a maior parte da população brasileira ser de pessoas negras (54%). Como instituição social, a escravidão está na origem dos diferentes tipos de violências perpetradas contra as pessoas negras, até os dias atuais, em nosso país, fragilizando nossa democracia e o acesso da maioria da população brasileira aos seus direitos fundamentais. A escravização é um trauma coletivo para a memória nacional e, em especial, uma mácula na história e memória da população negra. Ela não pode ser tratada de forma leviana e jocosa como o doutor Marcim o fez, no vídeo.

O racismo foi definitivamente criminalizado, no Brasil, em 05 de janeiro de 1989, pela lei número 7.716, punindo todo tipo de discriminação ou preconceito, seja de origem, raça, sexo, cor, idade. A lei 9.459, de 13 de maio de 1997, atualizou aquele texto dizendo no artigo 1º “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Em seu artigo 20, lemos: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa”. Somase a esses textos, a obrigatoriedade de toda a população aprender sobre a História e Cultura AfroBrasileira e Africana (Lei 10.639/2003). É fundamental registrar que a Constituição Federal, de 1988, determina o combate a todo tipo de preconceito e discriminação, como um de seus objetivos fundamentais, repudiando nominalmente o racismo (Art. 4º, inciso VIII). É também um fundamento da Constituição do Brasil a defesa da dignidade da pessoa humana e a prevalência dos Direitos Humanos.

Aliás, o Brasil é um dos países signatários da Declaração Universal dos Direitos Humanos, desde o ano de sua promulgação (10 de dezembro de 1948), tendo esse texto valor legal entre nós, portanto. Além desse texto fundador, internacionalmente, o Brasil é também signatário do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1992), do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1992) e da Convenção Americana de Direitos Humanos (1992). Tudo isso mostra a importância de se entender o que foi a escravização e a importância de se combater uma de suas consequências mais violentas: o racismo.

Devemos entender o racismo, no Brasil e no mundo, como uma estrutura que, infelizmente, impede a justiça e a felicidade, no interior das relações sociais e que por isso precisa ser combatido. Frente a tudo isso, vemos no vídeo do doutor Marcim uma ocorrência que afeta diretamente a dignidade daquele trabalhador (mesmo que ele não tenha consciência disso) ao ser submetido àquela situação ultrajante de emulação da escravização histórica. A este ocorrido, pesam-se ainda dois outros fatos: que o homem trabalhador está submetido à uma relação desigual de poder econômico (afinal, é ele um recém contratado e não tem condições iguais de negociar o que lhe é imputado ou sugerido a fazer por seu empregador); e o fato de ser um trabalhador racializado como preto. Colocar esse homem como um escravizado, mesmo que numa suposta “brincadeira” (como alegado pelo doutor Marcim em momento posterior) para nomear sua prática racista, ofende a memória e a história de toda a população negra do Brasil, materializando, de forma evidente, o racismo cometido.

Afinal, no vídeo, há um local nomeado por senzala. Nele, vemos objetos históricos de castigo e suplício de escravizados, como gargalhadeiras (instrumento de contenção preso ao pescoço), peias para pés e mãos, correntes, todos veridicamente utilizados no tempo da escravização. O que vemos no vídeo, portanto, é um conjunto de objetos e ambiente que constituem uma espécie de museu mórbido e sádico para o regozijo racista de brancos, fazendo apologia e banalizando (alegação de se fazer graça), a violência e a tortura, chagas ainda abertas em nossos dias.

Por tudo isso, o vídeo funciona como uma estratégia de submissão e inferiorização afetando individualmente, mas também coletivamente, todas as pessoas pretas e negras, em sua subjetividade, em sua auto-estima, em sua memória, em seus sentimentos e, sobretudo, em suas perspectivas de futuro. Práticas racistas não podem existir, muito menos ser “confundidas” com brincadeiras, nem como diversão ou humor. Saiba-se: racismo é crime imprescritível e inafiançável.

Nós, como sociedade, não aceitamos tais práticas racistas em nenhum lugar, muito menos como conteúdo para alimentar a egolatria de redes sociais. A falta de letramento racial do homem trabalhador, alvo da prática racista do doutor Marcim, não pode ser utilizada como defesa do racismo que seu patrão perpetrou contra toda a sociedade, mas, sobretudo, contra todas as pessoas negras do Brasil. Que seja feita justiça e que haja reparação. É a nossa exigência, é o nosso direito.

Cidade de Goiás, 16 de fevereiro de 2022

Assinam:

  1. Agentes de Pastoral Negros do Brasil
  2. Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), Brasil
  3. Associação Brasileira de Pesquisadores Negrxs (ABPN), Brasil
  4. Associação de Docentes da Universidade Federal de Jataí (AdCAJ) / ANDES-SN, Jataí, GO
  5. Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB), Seção Cidade de Goyaz, GO
  6. Associação Espaço Cultural Vila Esperança, Cidade de Goiás, GO
  7. Associação Nacional de História, seção Goiás (ANPUH-GO), GO
  8. Associação Quilombo Kalunga, Cavalcante-Teresina-Monte Alegre, GO
  9. Associação Quilombola Alto Santana (AQAS), Cidade de Goiás, GO
  10. Bloco Não é Não, Goiânia, GO
  11. Casarão Cultural Rosinha do Brejo, Cidade de Goiás, GO
  12. Centro de Referência Negra Lélia Gonzalez (CRENLEGO), Goiânia, GO
  13. Centro Popular da Mulher/UBM, Goiânia, GO
  14. Colegiado do Curso de Licenciatura em Geografia da UEG, Campus Cora Coralina, Cidade de
    Goiás, GO
  15. Colegiado do Curso de Licenciatura em História, da UEG, campus Cora Coralina, Cidade de
    Goiás, GO
  16. Colegiado do Curso de Licenciatura em História, da UEG, campus Norte, Uruaçu, GO
  17. Colegiado do Curso de Licenciatura em História, da UEG, campus Quirinópolis, GO
  1. Colegiado do Curso de Licenciatura em Letras da UEG, Campus Cora Coralina, Cidade de Goiás,
    GO
  2. Coletiva Feminista GSEX – Rede de mulheres feministas, da Universidade Federal de Goiás
    (UFG), Câmpus Goiás, GO
  3. Coletiva Margaridas – Pela Autonomia das Mulheres no PT, Goiânia, GO
  4. Coletivo de Entidades Negras (CEN), Brasil
  5. Coletivo de Estágio e Ensino de História da Universidade Estadual de Goiás (UEG), GO
  6. Coletivo de professoras e professores de Historia (CPH GYN) da Rede Municipal de Educação de
    Goiânia, GO
  7. Coletivo Flores do Nim, coletivo LGBTQIA+ da Cidade de Goiás, GO
  8. Coletivo Pretas de Angola, Goiânia, GO
  9. Comissão de Heteroidentificação da Universidade Federal de Goiás (UFG), Câmpus Goiás, GO
  10. Companhia Express’arte, Cidade de Goiás, GO
  11. Conselho Municipal de Políticas Culturais, Cidade de Goiás, GO
  12. Coordenação da Comissão de Mobilização Docente (CMD), da Universidade Federal de Goiás
    (UFG), Câmpus Goiás, GO
  13. Curso de História, da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás), Goiânia, GO
  14. Curso de Licenciatura e Bacharelado em Educação Física da Universidade Estadual de Goiás, GO
  15. Curso de Licenciatura em Física da Universidade Estadual de Goiás, GO
  16. Curso de Licenciatura em Geografia da Universidade Estadual de Goiás, GO
  17. Curso de Licenciatura em História da Universidade Estadual de Goiás, GO
  18. Delegada Adriana Accorsi, Deputada Estadual de Goiás, GO
  19. Elenízia da Mata, vereadora, Cidade de Goiás
  20. Escola Pluricultural Odé Kayodê (EPOK), Cidade de Goiás, GO
  21. Faculdade de Educação (FE), da Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, GO
  22. Faculdade de História (FH), da Universidade Federal de Goiás (UFG), Câmpus Samambaia,
    Goiânia, GO
  23. Fórum de Religiões de Matriz Africana do Estado de Goiás, GO
  24. Fórum Goiano de Mulheres Negras, GO
  25. Frades Dominicanos do Convento do Rosário, Cidade de Goiás, GO
  26. Grupo Calunga de Capoeira Angola, Goiânia, GO
  27. Grupo de Estudos e Pesquisas de Ciências Humanas da Faculdade de Educação, da Universidade
    Federal de Goiás (UFG), Goiânia, GO
  28. Grupo de Estudos Jorge Laffond (Masculinidades e Sexualidades Afro-Diaspóricas), da
    Universidade Federal do Pará (UFPA), PA
  29. Grupo de Estudos para Relações Étnico-Raciais (GERES), da Universidade Federal de Goiás
    (UFG), Câmpus, GO
  30. Grupo de Mulheres Negras Dandara no Cerrado, Goiânia, GO
  31. Grupo de Mulheres Negras Malunga, Goiânia, GO
  32. Grupo de Pesquisa Anômalos, da Universidade Federal de Catalão (UFCAT), Catalão, GO
  33. Grupo de Pesquisa em Pluriepistemologias e Ensino de História (UFJ/UnB/UFU), Brasil
  34. Grupo de Trabalho de Ensino de História e Educação, seção Goiás (ANPUH-GO), GO
  35. Grupo de Trabalho de História Antiga, seção Goiás (ANPUH-GO), GO
  36. Grupo de Trabalho de História cultural, seção Goiás (ANPUH-GO), GO
  37. Grupo de Trabalho de História da África e Africanidades, seção Goiás (ANPUH-GO), GO
  38. Grupo de Trabalho de História e Cinema, seção Goiás (ANPUH-GO), GO
    Grupo de Trabalho de História e Cultura Indígenas, seção Goiás (ANPUH-GO), GO
  39. Grupo de Trabalho de História e Patrimônio Cultural, da ANPUH, Brasil
  40. Grupo de Trabalho de História e Patrimônio Cultural, seção Goiás (ANPUH-GO), GO
  41. Laboratório de pesquisa em Gênero, Etnicidades e Diversidade (LaGED), da Universidade
  42. Federal de Catalão (UFCAT), Catalão, GO
  43. Maçonaria União e Justiça, Cidade de Goiás, GO
  44. Mauro Rubem, vereador, Goiânia, GO
  45. Movimento Negro Unificado (MNU), Brasil
  46. Núcleo de Estudos Africanos e Afro-Diaspórico (NEAAD/UEG, câmpus Cora Coralina), Cidade de
  47. Goiás, GO
  48. Núcleo de Estudos Afro-brasileiro, Indígena, de relações de Gênero e Sexualidades
  49. (NEABI/NUANCES) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG),
  50. campus Cidade de Goiás, GO
  51. Núcleo de Estudos das Relações de Gênero, Raciais e Afro-descendentes NEGRA/IFG, Goiânia,
  52. GO
  53. Núcleo de Estudos e Pesquisa em Agroecologia e Agroecossistemas (NEPAA) do Instituto
  54. Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG), campus Cidade de Goiás, GO
  55. Pós-Graduação em Geografia (PPGEO/UEG), da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Campus
  56. Cora Coralina, Cidade de Goiás, GO
  57. Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais, Memória e Patrimônio (PROMEP/UEG), da
  58. Universidade Estadual de Goiás (UEG), Campus Cora Coralina, Cidade de Goiás, GO
  59. Programa de Pós-Graduação em História: Cultura e Poder, da Pontifícia Universidade Católica
  60. de Goiás (PUC Goiás), Goiânia, GO
  61. Rede de Historiadorxs Negrxs, Brasil
  62. Rede Goiana de Mulheres Negras, Goiânia, GO
  63. Turma da Especialização em História e cultura 2019/2022 FH UFG, Goiânia, GO
  64. Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares

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